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terça-feira, 20 de setembro de 2011

Crônica do escritor João Bosco "BURACO DE TATU"

BURACO DE TATU


Crônica de João Bosco da Silva

ERA EM UM TEMPO em que a fauna e a flora ainda não tinham sido completamente devastadas pelas roças e queimadas, e a caça ainda corria farta em seu habitat natural. A devastação, com suas terríveis conseqüências, ia acontecendo lenta e gradativamente a cada ano, a cada inverno.
Naquele tempo, o peba, o bola e o tatu eram de se dar com o pé. O veado e a cutia, o tamanduá e o gambá também existiam em grande quantidade. E mais raramente, mas ainda encontradiços nas “terras de ausentes” dos Gerais, o queixada, o caititu e a paca. Alguns caçadores davam notícias também de capivara e anta, animais de muito boas carnes. Com relação a esses últimos, tenho cá as minhas dúvidas.
Ainda se podia ver a correr pela mata a ema e sua coirmã seriema. Também o jacu e a zabelê era comum encontrar-se. Das aves menores, nem se fala. Papagaios, maracanãs e periquitos eram aos bandos. Predadores infernais das lavouras, era preciso espalhar espantalhos pelas roças ou espantá-los com matraca ou aos gritos dos meninos, cuja ocupação outra não era que vigiar toda essa população voraz que tudo fazia por dilapidar a fartura que o lavrador conseguia produzir a duras penas.
“Griguilins dos infernos... Se ao menos só comessem o necessário... Mas não, destroem tudo que vão encontrando pela frente” - verberava o velho Loura, a xingar e a maldizer periquitos e “copios”, que aos bandos dizimavam os “canivetes” e vagens verdes de sua roça de feijão.
A codorniz, a nambu e a juriti eram aos montes. Isso sem falar no sofreu, no pintassilgo, no pica-pau, no canário, no bem-te-vi e outros tantos cantadores de nossas manhãs e tardes sertanejas... Ah, também o assum-preto, de que falava Gonzaga.
Tudo em vorta é só beleza,
só de abril e a mata em frô,
mais assum-preto cego dos óio,
num vendo a luz, ai, canta de dor...
Tarvez por inguinorança,
ou mardade das pió,
furaro os óio do assum-preto
pra ele assim, ai, cantar mió...

E que dizer das aves de rapina, como o carcará e o gavião? E do cancão, que acuava cobra? Tanto bicho que a gente não vê mais...
Por onde andam as rolinhas – as famosas “asas brancas” de Gonzaga -, que faziam nuvem nos campestres e fundos esturricados das lagoas?...
O velho Loura não era dado a caçadas. Meus irmãos também não, talvez até por seguirem o exemplo do pai. Se o peba dava bobeira, eles o matavam e o punham na panela. Isto é, peba do Viroveu; porque os da Ribeira eles não queriam. Dizia-se que comiam defunto. Ali, na Ribeira, ficava o cemitério. Pelo sim, pelo não, era melhor evitar comê-los. Aqui, acolá, uma boca-de-noite, Seu Loura concordava em sair para estumar cachorro em algum tatu cujo fojo estivesse de fresco. Afora isso, nada mais.
Reclamava se algum dos filhos sacrificava um mambira ou gambá pelo simples prazer de matar, embora aprovasse a caça ao veado, desde que moderadamente, de forma a evitar o seu extermínio. Bicho de carne quase escura, sangue forte; gostosa, na paçoca.
A paixão do velho Loura era pelas caçadas de mel de abelha. A abelha era farta e diversificada, não havia perigo iminente de se acabar, como era o caso de alguns animais silvestres.
Abundavam em nossas matas o munduri, o jati, a abelha-branca, o brabo, o manso, a cupira e mais raramente o uruçu. O arapuá era quase uma praga. Mel forte e grosso, samburá avermelhado, para nada servindo. Nesse tempo a “oropa” e a “africana” ainda não se haviam aclimatado entre nós.
Nada melhor para meu pai que saborear um favo de mel ali na horinha, na ponta do “inzope” de croá. Ele o comia assim; nós, meninos, mais sem regras ou modos, o fazíamos metendo o dedo nas cavas dos favos, escondidos. Em qualquer dos casos, o mel ficava babado.
Gostoso e até medicinal era o mel de abelha. Se era da florada de “canilinha”, então nem se fala. Das folhas dessa plantinha até se faziam “torrados” e banhos para extirpar o “difurço” das ventas e o “estalicido” do peito.
Caçava com método, Seu Loura. Nada de exageros. Uma ou duas, no máximo três caçadas no período invernoso. Durante a seca, jamais. Segundo ele, a sobrevivência nesse período é ruim para qualquer vivente. Daí o cuidado para não molestar as abelhas, que estarão, também como o homem, no tempo das “vacas magras”, comendo o que armazenaram durante o tempo da fartura.
Dentre essas duas ou três caçadas anuais, havia uma que se revestia de um caráter festivo, senão sagrado: era aquela que antecedia a semana santa. Naquele tempo, a semana era SANTA mesmo, isto é, todos os seus dias eram guardados; a dieta do jejum, rigorosamente observada, inclusive por meninos e meninas acima dos 7 anos. Nada de trabalhos pesados. Trabalhos, aliás, só os domésticos, considerados essenciais. Tudo frugal, continente, comedido.
O almoço, na sexta-feira santa, revestia-se desse caráter sagrado e se constituía em verdadeiro banquete. Além do trivial feijão verde, temperado com nata e manteiga e recheado de maxixe, havia o queijo como prato principal, tendo no mel de abelha a fina sobremesa, como complemento de uma dieta alimentar saudável e substanciosa. Era uma espécie de celebração, o banquete eucarístico em que o humano e o divino se uniam numa ritualística de fé e oração, de muita autenticidade.
* * *
OS FILHOS TODOS, casados e solteiros, os netos já taludos, à frente Seu Loura, o patriarca do clã, estavam prontos para a caçada. Almoçávamos cedo e saíamos ali pelo meio dia. Se a caçada era mais longe, no Morro das Caboclas ou nos Oliveiras, a saída era manhãzinha cedo. As cabaças d’água e o farnel nos bisacos já ficavam preparados de véspera. Alguns a pé, outros em lombo de jumento, a viagem era um folguedo, uma animação.
Chegados ao destino, espalhavam-se os caçadores em várias direções, cada um com o seu facão, seu machado e sua cabaça para recolher o mel. No horário predeterminado, todos se reuniam no ponto marcado para a volta, que poderia ser festiva ou triste, dependendo do proveito da empreitada.
Tirar mel tinha sua ciência, que abelha era bicho sabido. Muitas vezes ela fazia uma tapagem no oco, dando a entender que a produção terminava ali. Na verdade, quase sempre aquilo era para enganar o caçador. Mais para baixo ou mais para cima, estavam escondidos os melhores favos, em quantidades bem maiores que os encontrados perto da boca.
Bonito era ver-se a escalavragem numa galha de umburana ou no tronco de um amarelo, quando a abelha era boa. O bom tirador de mel tinha de sair procurando, perfurando aqui e ali a madeira, como a fazer prospecções em busca dos melhores favos. Também o bom caçador não extraía todo o mel encontrado. Havia que deixar alguma reserva para a alimentação dos filhotes e das próprias abelhas despojadas. Uma espécie de garantia de sucesso nas futuras caçadas.
No retorno de uma dessas expedições, corria o menino à frente, pelo estreito caminho, em festejo à boa colheita em que se encheram todas as cabaças. Estava bem alimentado de carne assada, farinha e rapadura, sem falar que antes já se fartara de mel, através do velho método de lamber o dedo repetidas vezes após introduzi-lo no favo ou na boca da cabaça.
De repente, ele pára junto ao tronco de um caneleiro. Solta um grito de vitória, como da vez em que encontrara o munduri na frondosa umburana. O velho Loura aponta na curva do caminho, puxando a caravana:
- Pai, aqui tem um tatu com o rabo de fora!
Não adiantou o grito de advertência do velho. A ação do garoto em pegá-lo é imediata. No instante seguinte, já a perigosa jararaca faz volutas no ar, suspensa da mão infantil em que se debate. De uma fração de segundos é o tempo que transcorre para soltar-se, enrodilhar-se e arremessar o bote. Também de segundos é o tempo que leva Seu Loura para decepar-lhe a cabeça com o seu amolado “colino”.
Chegou tarde, não obstante a presteza com que agiu. As duas incisões estão bem nítidas na batata-da-perna do garoto, cuja língua logo começa a engrossar na boca.
Imediatas e precisas são as providências. Seu Loura, sem pensar duas vezes, rasga uma tira da própria camisa e improvisa um torniquete logo acima da mordida. Não suga no local porque tem dentes estragados por onde poderá o veneno penetrar; mas espreme bem, no lugar da picada. Em seguida, manda que procurem por ali uma batata-de-tiú, o que não foi difícil de achar. O menino põe-se a mastigar o tubérculo aquoso e amargo, enquanto se prepara ali mesmo uma garapa bem forte de rapadura, que lhe dão a beber até provocar engulhos.
Feito isso, era esperar pelos efeitos das mezinhas. Dali mesmo, no melhor jumento, é despachado um portador para o povoado, a buscar a chave do sacrário para pôr na boca do ofendido.
- Abaixo dessas mezinhas - diz Seu Loura, com muita fé e esperança - só mesmo os poderes de Deus.
Foi muito difícil. Mas graças a Deus e às providências de meu pai, estou vivo para contar esta história.
João do Vale, competente compositor, maranhense de Pedreiras, e conhecedor profundo das coisas sertanejas, já advertira desse real perigo. Eu é que, embora lhe solfejasse a modinha tão em voga no momento, não lhe dera a devida atenção.

Não meta a mão em buraco de tatu
que é muito perigoso, é preciso ter cuidado...

6 comentários:

  1. Caro João Bosco, sua crônica me fez lembrar de minha infância e adolescência. De tudo que você falou eu fiz um pouco e mais: capturei canários com alçapão e sacrifiquei inocentes pássaros com as famosas baladeiras. A sua crônica, entre outros méritos, é fiel à realidade daqueles tempos, além de empregar o linguajar do povo simples, levando-nos a um gostoso mergulho no mundo das nossas lembranças mais distantes. Abraços do amigo e admirador. José Carmo Filho

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  2. Eh rapaz a quanto tempo não via a palavra Griguilin, mas era assim mesmo que a hipolitana Donana minha mãe, se referia ao que poraqui chamamos de periquitos e tuins. Talvez tenha aprendido com meu avô seu pai o Jenipapeirense Franco, emérito caçador segundo minha avó, e que com com certeza inconscientemente muito deve ter contribuido para a devastação da fáuna a que voce se refere. Dormi muitas vezes embalado em uma redinha ao som de "não meta a mão no buraco do tatú " bela crònica, desse jeito você me mata de saudade.

    João Batista Rodrigues BSB/DF

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  3. Eita Tio!
    que crônica boa de se ler.
    fui viajando na sua história.
    e voce ainda colocou uma pitada de humor, que é bem particular de um bom historiador.
    o tatu o peba, era realmente o banquete em nossa mesa.
    quando fala da fauna da nossa região, nas décadas passadas,tinha mesmo, muita diversidade de pássaros, lembro muito bem de todos esses citados.
    mas, hoje aqueles pássaros estão distantes , e a diversidade cada vez menor,
    as abelhas também, aquele mel de "oropa", era de dar àgua na boca.
    ao lembrar daquele mel gostoso, é de lamber os dedos mesmo.
    o mel de hoje não tem o mesmo sabor do de outrora...
    a parte do tatu com o rabo de fora, foi emocionante, e a reação do võ loura com o facão a peixeira,foi demais...meu avô, era mesmo um guerreiro...
    trabalhou muito e era muito amado por todos.
    Monica Silva

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  4. Seu Loura era mesmo um homem muito inteligente e consciente, pois naquela época quase ninguém se preocupava com a preservação da natureza. Lembro-me muito das caçadas, era grande a expectativa daqueles que ficavam em casa aguardando os resultados.
    Muito gostosa a crônica, Bosco.

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  5. Griguilins;abelhas,matas e mel lembram o Piauí, a primavera e setembro. Setembro lembra uma visita especial que estamos esperandoAdorei sua crônica, revivi cenas de minha infância adoçada com mel de abelhas e c com cheiro de flor de catingueira, banhos de canilinha embalados com cantos de passarinhos. um grande abraço. ISAURA ADELAIDE .BSB/DF 24092011

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  6. AGRADEÇO PENHORADAMENTE AS MANIFESTAÇÕES DOS AMIGOS JOSÉ CARMO, JOÃO BATISTA, MÔNICA (SOBRINHA QUERIDA, CLOTILDES E ISAURA.
    SAUDAÇÕES
    JOÃO BOSCO DA SILVA - TERESAINA-PI

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