POEMA CORDEL "AS HERALDÍADAS"
A T O S
Anteato
Ato 1.
- No Tempo de “Brasil Grande”
- O SONHO DA CASA PRÓPRIA OU A
OITAVA MARAVILHA DO MUNDO MODERNO
ATO 2.
- No Tempo das “Vacas Magras”
- CASA DE CONJUNTO OU O “NINHO DE POMBO” DO B N H
Ato 3.
- No tempo da Carestia
- MUTUÁRIO INADIMPLENTE OU VIGIA DO B N H
A n t e a t o
Identificação
Me chamo Heraldo da Silva.
Sou brasileiro, bancário,
casado, pai de seis filhos,
de caráter multifário,
um ser sempre em mutação,
sonhador, visionário.
Conforme se depreende,
minha identificação
traz em si vício de origem
de enorme contradição:
- se Heraldo é bronze de nobre,
Silva é marca do povão.
Muito embora minha mãe
jamais tenha esclarecido,
suponho que algum fidalgo
ao erro a tenha induzido,
e Heraldo seja homenagem
ao meu pai desconhecido.
Apesar de ter nascido
sem berço e sem tradição,
minha santa mãe me deu
estudo e educação,
que lutar me permitiram
por melhor situação.
Mal vi o tempo passar,
com livros sempre envolvido...
Mas, de repente, o menino
agora estava crescido...
Só me dei conta do fato
com o ginásio concluído.
Foi então que apareceu,
do rádio em noticiário,
para um banco oficial,
concurso de escriturário.
Me inscrevi. Lutei. Passei!
E assim me tornei bancário.
A T O 1.
O Sonho da Casa Própria ou a Oitava
Maravilha do Mundo Moderno
A vida correndo os trilhos
do tempo na sintonia,
aos poucos me foi levando
a natural alegria;
coloquei os pés no chão
pra viver o dia-a-dia.
A classe média de outrora,
folgazã e apetecida,
logo passou a sofrer
o alto custo de vida;
sem poder de aquisição,
tornou-se massa falida.
Em tempos assim bicudos,
não havia atenuantes;
os salários achatados
e os preços acachapantes
- comida, roupa, remédio
e os aluguéis escorchantes.
Dentre todos os vilões
daquele triste fadário,
o aluguel despontava
cruel, mas prioritário,
levando mais da metade
do corroído salário.
Premido por aperturas,
sem saída e sem opção,
sempre a mudar de endereço,
feito ave de arribação,
optei pela casa própria
como a melhor solução.
Decisão assim tomada,
busquei dar-lhe cumprimento;
nos órgãos oficiais
tentei financiamento,
até em bancos privados
procurei atendimento.
Premissa posta e assente,
o nó górdio da questão
era agora financeiro,
pois minha situação
de apertura me deixava
peado do pé pra mão.
Não dispunha, no momento,
para o projeto em enfoque,
de qualquer recurso extra:
- material em estoque,
terreno, poupança, “grana”,
sendo esta a pedra de toque.
Por meu banco a prestação
ficava muito elevada;
pela Caixa, não dispunha
dos dez por cento de entrada;
nem mesmo dinheiro havia
pra tirar a papelada.
Mas como sou persistente
e impertinente até,
pensei: tenho meus amigos,
e seja o que Deus quiser;
pois Ele é o meu timoneiro,
meu esteio e minha fé.
Um colega meu de banco
possui terreno ideal;
vou palavrear com ele
a transferência legal
e acertar o pagamento
num esquema quinquenal.
No tocante a dimensões,
não sou lá muito exigente;
o terreno do colega
é mais que suficiente:
- dispõe de cascata e lago
e um riacho permanente.
Quanto a casa propriamente
(dizem os croquis provisórios):
salas-de-estar na asa norte,
na sul, quinze dormitórios,
suítes particulares
e o conjunto de escritórios.
Não é preciso que a casa
tenha status de mansão,
basta apenas ter espaço
que me dê locomoção
e permita um bom relax
nas horas de afobação.
No tocante a acabamento,
não é coisa muito cara;
a casa é bastante simples,
moderna, porém avara,
com assoalho de mármore
importado de Carrara.
Basculantes e janelas,
portas, fechos e gradis,
luminárias, candelabros,
móveis todos no verniz,
com as paredes internas
revestidas de lambris.
Para o clima tropical
quente e seco do sertão,
vou montar uma central
de ar, com dupla função:
- se faz frio, o exaustor;
se calor, condensação.
Os períbolos e pérgulas
serão, pois, acalçadados
de pedras à portuguesa,
com motivos desenhados;
jardins suspensos, floridos,
e parques arborizados.
Piscinas, fontes termais,
são projetos pra depois,
porque tenho de erigir
não um prédio, porém dois:
- não quero ser um mau filho
nem de minha mãe algoz.
Se não vejam o que mamãe
diz, coberta de razão:
“Meu filho, a pessoa velha
só traz atrapalhação,
por isso na sua casa
não convém que eu more não”.
Amigos meus que me leiam,
compreendam, por favor!
Eu não sou visionário,
um poeta e sonhador:
apenas quero um palácio
à Nabucodonosor.
Não importa a situação
que me aflige atualmente,
porque eu, como o Brasil,
uma potência emergente,
vou continuar tentando
o sonho grandiloqüente!
Tudo é grande, tudo é belo!
Quem não crê nisso é um tolo:
aí está o futebol
e a Taça como consolo;
aí está o “Milagre”
fabricando o “Grande Bolo”!
No país tricampeão,
arde uma chama votiva,
em que esperança e otimismo
mantêm cadeira cativa,
permitindo a cada um
sonhar com a “Esportiva”.
O teste quarenta e quatro
fez brasileiro sonhar,
cada um com mil projetos,
prontos para disparar;
eu mesmo, com meus dez sócios,
ia pro Rio embarcar. *
Fui dormir feliz da vida,
pensando com meus botões...
Mas aí a má notícia
desfez as vãs ilusões:
havia mais ganhadores
que o prêmio de 100 milhões...
De qualquer forma, melhor
do que aluguel pagar,
era ter a casa própria
pelo tal B N H;
vinte anos era o prazo
para eu me aposentar.
* Nesse tempo, o pagamento das apostas da Loteria
Esportiva ainda era feito no Rio de Janeiro.
A T O 2.
Casa de Conjunto ou o
“Ninho de Pombo” do B N H
Eu desejava uma casa
bem ampla, bem arejada,
num terreno bem maior
do quem u’a milha quadrada,
para ali plantar meu sítio
e ter a vida sossegada.
Os meus desejos e sonhos
já foram bem detalhados;
só lamento os ver apenas
em parte realizados,
porque dos originais
estão bem distanciados.
Pois finalmente vou ter
minha casa construída,
uma pena que não seja
como a sonhei erigida;
mas como está já me serve
de refúgio e de guarida.
Onde o mármore importado?
Onde os brilhantes lambris?
Onde os roseirais vistosos
rodeados de gradis?
E as árvores frondosas,
onde cantam os bem-te-vis?
A ala sul foi pro norte;
a do norte, qual o fim?
Onde as câmaras de banho
e o enorme camarim?
Onde os salões de bilhar,
de esgrima e espadachim?
E os campos de futebol,
de golfe e basquete, e as pistas
de corridas de cavalos,
de memoráveis conquistas?
E o lago de águas tranqüilas,
imenso, a perder de vistas?
Fui sempre admirador
de palácios e castelos,
solares e sobradões
vistosos, caros e belos!
Possuí-los sempre foi
o maior dos meus anelos!
Os palacetes de França
- L’Etat c’est moi - Luízes,
o poder e a sedução
em seus diversos matizes,
deixando nos corações
as mais fundas cicatrizes...
A humana contradição,
em que a intriga era a vinheta:
- Luiz XV indo às caçadas,
Richelieu na mutreta,
os amores e as futricas
de Maria Antonieta!
Casteletes d’Inglaterra,
de fantasmas povoados;
a Agatha Christie inventando
os personagens amados:
- Miss Marple, Poirot,
majores aposentados!
Também a gótica arte
que se vê noutros países;
catedrais, torres nos céus
como a indicar diretrizes...
China e Japão a mostrarem
os seus diversos matizes...
Quero crer que o sangue nobre,
que correr em mim suponho,
deixou-me o refinamento
e esse espírito risonho,
nobreza e galanteria,
e a tendência para o sonho!
Para quem, como eu, sonhou
com fontes termais e banhos,
com piscinas e jardins,
e vãos e vãos sem tamanhos,
só resta me lamentar
a carência dos meus ganhos.
Eu, tão pobre entre os colegas
de minha classe escolar,
todos bem alimentados,
casas boas pra morar...
Só me restava o consolo
de olhos abertos sonhar!!!
Depois... adulto e bancário
- “Carreira de bom futuro!”...
seguiu-se a perda de status
e o tal de emprego seguro...
Só restando à pobre classe
apenas trabalhar duro.
Hoje, o meu sonho mais caro
de palacete ou mansão
sumiu como por encanto
nas asas da inflação,
só me ficando o acredoce
sabor da desilusão.
Tornei-me um desalentado,
em que a paixão já não viça;
porém ter a casa própria
tornou-se a arma de liça
contra o locador que tem
a alma negra da cobiça.
Por isso com novo arrojo,
e após pesar bem o assunto,
com meu sonho já desfeito
qual as cinzas de um defunto,
me decidi pela compra
de uma CASA DE CONJUNTO.
O meu caso, companheiros,
é bastante singular:
desejei ter uma casa
fora do padrão vulgar.
Não deu certo, paciência!
O remédio é esperar.
Esperar um melhor tempo,
mas continuar sonhando;
por ora, adoto o provérbio
do povo, filosofando:
- “mais vale um pás’ro na mão
que dois pássaros voando”.
A T O 3.
Mutuário Inadimplente ou
VIGIA DO B N H
No tempo de “Brasil Grande”,
em que tudo era euforia,
o verde fluindo farto,
redimindo a economia,
ser pessimista era um crime
que o civismo coibia.
Não havia que fugir
desse sonho condoreiro,
era, de ponta-cabeça,
mergulhar de corpo inteiro,
dançando no mesmo ritmo
do “Milagre Brasileiro”.
Dessa forma, decidi,
seguindo a pátria cartilha,
construir um palacete
adequado pra família,
conforme já foi descrito
na “Oitava Maravilha”.
Ocorreu que, nesse tempo,
apesar da existência
dos abundantes recursos
nos sistemas de assistência,
me encontrava, simplesmente,
num estádio de pré-falência.
Desse jeito, endividado,
com meu sonho já defunto,
tive de mudar os planos,
não antes de pensar muito,
e me decidi comprar
uma CASA DE CONJUNTO.
Após a compra, eu achei
que deveria mudar
a aparência da acanhada
casa do B N H.
E com um afã todo meu,
comecei a reformar.
“Papagaios”, agiotas,
RECON e todos os meios
usei, até conseguir
(apesar dos aperreios)
aproximar minha casa
à dos velhos devaneios!
O tempo passou e tudo
começou a correr bem:
melhorei nos meus empregos
e minha mulher também.
Nos anos 80 entramos
sem dever nada a ninguém.
Mas a crise financeira,
que assola o mundo confuso,
insinuou-se entre nós
tal como um ladrão intruso,
fazendo o nosso “Milagre”
desabar em parafuso.
Crise do petróleo e outras
seguindo nos calcanhares,
nosso sonho de potência
como pluma pelo ares,
cofres agora vazios
com a ausência dos doláres.
Igual a um balão de ensaio,
que se rompe e cai no chão,
também foi pro “beleléu”
a promessa do J-o-ã-o, [1]
que era de bem encher
a panela do p-o-v-ã-o ! ! !
Nada disto aconteceu,
só dor e decepção:
os arrochos de salários
justificando a inflação,
e a classe média perdendo
o poder de aquisição.
Assim foi que o sonho azul
de tantos foi pelo ar;
meu sonho de casa própria
terminou por se acabar:
pois a sua prestação
já não posso mais pagar.
Entre todas as opções,
que os Andreazzas [2] montaram,
nenhuma serve aos milhões
que a casa própria compraram...
E assim suas esperanças
- como o sonho! - se acabaram...
Eu, como sou persistente,
ao ministro vou propor
ficar na casa servindo
de v i g i a e zelador,
até que o B N H
lhe encontre algum comprador.
Aqui se despede Heraldo,
pai de família vencido;
mais um bancário quebrado,
cansado e desiludido...
Mataram-me as esperanças,
neste país corrompido.
* * *
... De repente, quebrando o silêncio da manhã, um estampido no ar. As pessoas, curiosas, saem às portas, indagando: “ O que foi, o que foi?” Murmúrios, azáfama, rebu. Finalmente, descobre-se que um mutuário, após ouvir o conselho do Presidente J-O-Ã-O, no noticiário matutino da televisão, resolve acatar a sugestão da autoridade máxima: dá um tiro no ouvido. “- P u u u m m m . . .”
... Entre o pasmo geral e gestos de incredulidade da multidão ...
C A I O P A N O
(Essa entrevista, de fato, aconteceu, bem assim o suicídio do mutuário do BNB).
Teresina-PI., início da década de 80.
[1] Trata-se do Presidente João Figueiredo.
[2] Mário Andreazza, Ministro do Interior
do Governo Figueiredo.
Ninguem tem paciência de ler tanta coisa! Af!!!
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